domingo, 23 de junho de 2013

ajudada no alentejo

viajar pode ser, paradoxalmente, a melhor maneira de viver o presente, esse continuum processo incansável. os olhos deitam a vista sobre novas realidades, o corpo percebe renovadas sensações e o coração sente um diferente bater; tudo que nos cerca é menos o de sempre, manifestações até então desconhecidas. no alentejo, participo d'Ajudada, um encontro do movimento em transição (transition movement), cuja tese é a de que todos temos um dom, e a partir dele podemos trocar, material e imaterialmente, nossas dádivas uns com os outros, prescindindo assim da necessidade monetária e sua lógica perversa.

durante a Ajudada pude perceber que o agricultor aqui também é o intelectual, e vice-versa, coisa tão rara de se ver, mas que é uma nova realidade que está aí à frente. discute-se o mundo e como podemos ajudar uns aos outros, de que forma viabilizar um outro sistema, onde nossa vida teria um sentido mais holístico, integrado à natureza e aos dons de cada um, essenciais para a integração planetária - homem e natureza somos um.

embora saibam que não há resposta nem certezas, e que todos estamos em busca do caminho a ser desenhado, todos na Ajudada falam sobre suas crenças, sejam anarquistas, permacultores, ou anti-ideologistas. apesar de muito ter refletido nessas discussões, e, especialmente estado mais perto da cultura portuguesa e de uma brisa de esperança que tão bem me fez, senti que precisava ver o mundo, e fui trabalhar na cantina do evento - onde só participavam voluntários em todos os âmbitos -, e ali senhoras portuguesas trabalhavam com afinco pelo que diziam ser uma "feira de solidariedade", quando explicavam a seus conterrâneos o que se estava a passar. senti com elas o que é generosidade e que existe no coração daqueles que há tempos doam suas dádivas pelo bem comum.




depois disso, fui sentir a cidade daqueles alheios aos acontecimentos avant-garde que rolavam n"Ajudada. vi então as tunas, canções interpretadas por estudantes secundaristas, com animação deles e da comunidade. a festa acontecia no jardim interno duma velha biblioteca, cujo castanho do teto brilhava. à volta velhos artesãos expunham sua arte à comunidade: cerâmica, cortiça, bordado com castanha portuguesa. encontrei o seu monteiro, pintor que me lembrou van gogh e que me disse nunca ter visto um de seus quadros antes de começar sua arte, mas já se identificava de tanto que lhe diziam, era o van gogh do alentejo. o vizinho, seu manoel frutuoso, com suas cestarias, me detalhou o processo de coleta e estoque das vigas de castanho. quando lhe pergunto sobre as novas gerações, diz que lhe prometiam aprender a arte, mas tardavam um cadinho. aos 82 anos, somava 60 de prática na canastaria e tinha que baixar o preço dos cestos pois ninguém pagava o que mereciam.

ao deparar-me com seu macedo, seu frutuoso e os demais, percebi que a economia da dádiva - como já o disse o Marcos Cotrim sobre a região da Paraíba Nova - está arraigada na tradição mais antiga e se manifesta, há muito, onde a lógica do capital não foi ainda capaz de corroer os laços humanos mais profundos. sai da biblioteca contente porque no mundo real as coisas nem sempre vão tão mal.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

velhotas alentejanas

a mariana e a marta
observam diariamente o entardecer no rossio
as cadeiras no passeio e um adeusinho às vizinhas

o lamento da mariana
 juventude perdida
casa vazia

é a vida pra marta, se calhar vê-se o calvário da janela e bebe-se um copo de leite

ora se olha, ora se reza, dorme-se duas horinhas
pai nosso por todos e o calvário por alguns

momento simmeliano alfacinha

em lisboa, o trem suburbano vos leva a sintra, por cujo caminho vê-se hortas urbanas nos bairros menos favorecidos, isso já encanta. o céu lisboeta, seus velhos casarios e a vivacidade das nostálgicas tradições; sente-se aqui o prazer de ser algo que nunca se foi, e jamais ainda se imaginaria.



a mente se esvai e a automática racionalidade extingue-se por um momento, há agora vazio a contemplar o que de mais amplo se estende no tempo, sem resumir-se aos estratagemas quase essenciais à sobrevivência atual. é o fluir da vida e do que pôde ser construído pelo homem parece que ainda em harmonia com uma natureza primeira.

sábado, 1 de junho de 2013

wislawa - a polaca

OS PENSAMENTOS QUE ME VISITAM NAS RUAS MOVIMENTADAS

Rostos.
Bilhões de rostos na face da terra.
Dizem que cada um é diferente
dos que já se foram e dos que virão um dia.
Mas a Natureza – quem é que a entende? –
cansada do trabalho que nunca acaba
talvez repita suas ideias antigas               
e ponha-nos rostos
já usados outrora.

Pode ser Arquimedes de jeans que passa ao seu lado,
a czarina Catarina com roupa de brechó,                
um dos faraós de pasta e óculos.

A viúva de um sapateiro descalço
vinda de uma Varsóvia pequenina ainda, 
um mestre da gruta de Altamira
levando as netas para o zoológico,
um Vândalo cabeludo a caminho do museu
para se deliciar com os mestres do passado.

Os que tombaram há duzentos séculos,
há cinco séculos,
há meio século.

Alguém levado em carruagem dourada,
alguém levado em vagão de extermínio.
Montezuma, Confúcio, Nabucodonosor,
suas babás, suas lavadeiras e Semíramis
que só fala inglês.

Bilhões de rostos na face da terra.
Meu, seu, de quem –
você nunca saberá. Talvez a Natureza tenha que ludibriar
para dar conta dos prazos e da demanda
e pesque até o que estava submerso                
no espelho da deslembrança.

riqueza para mim

[paz, amor e simplicidade] três elementos que, ao preencherem nossa presença humana|divina, dão origem à palavra "riqueza", ou àquilo que posso imaginar como sendo o substrato genuíno desse termo.