terça-feira, 12 de agosto de 2014

Não queremos mais veneno na mesa ou no campo


“Só me ficaram com metade do carregamento, dizem que passou a haver menos compradores para o barro, que apareceram à venda umas louças de plástico a imitar e que é isso que os clientes preferem, Não é nada que não devêssemos esperar, mais tarde ou mais cedo teria de suceder, o barro racha-se, esboicela-se, parte-se ao menor golpe, ao passo que o plástico resiste a tudo e não se queixa. A diferença está em que o barro é como as pessoas, precisa que o tratem bem (...)” José Saramago

No sábado 9 de agosto assistimos ao filme “O Veneno está na Mesa 2” no Centro Cultural da Associação Arcanjo Gabriel, em Penedo. Realizado por Silvio Tendler em parceria com a Fiocruz, a obra apresenta alternativas de produção agrícola baseadas na agroecologia e na agrofloresta, em busca de opções que fujam das injustiças inerentes ao agronegócio, cujo alimento carrega veneno e sementes transgênicas capazes de contaminar o produtor e o consumidor e gerar diversas doenças para o homem e para a terra.
A conversa depois da sessão foi leve e profunda como a prática zen, um diálogo travado pelos habitantes da região, herdeiros tanto do movimento da contracultura – que aqui chegou muito antes das indústrias automobilísticas – quanto de saberes ancestrais de uma cultura tradicional das montanhas, como bem ressaltou o Rodrigo Rodrigues. Nossas indagações iam no sentido de buscar caminhos para uma soberania alimentar agroecológica, que, como diz uma das entrevistadas, é o caráter de produção que não porta em si injustiças sociais, de gênero, nem a exploração ou contaminação do homem do campo.
As conseqüências do uso de agrotóxicos ­– sem adentrar no mérito das sementes transgênicas – são desastrosas: os trabalhadores rurais são os primeiros a sofrerem os efeitos dos venenos com que lidam diariamente nas lavouras, sintomas que vão desde distúrbios nervosos e depressão a intoxicação aguda e cancêr. Esses produtos, encarados como a solução para as pragas da lavoura, matam tudo com o que se deparam, e exatamente por isso afetam qualquer ser vivo: animais, plantas, água, ar e terra são contaminados nas áreas de pulverização dos agrotóxicos.
Ao notar como sofrem os trabalhadores rurais e suas famílias ao estarem diariamente em contato com veneno e recorrentemente se depararem com o cancêr e outras manifestações de intoxicação, me lembrei dos africanos contaminados com o ebola e dos palestinos refugiados em seu próprio território; exemplos de indivíduos desvalorizados pela civilização atual, cuja penúria parece não ser suficiente para que haja mobilização capaz de alterar o curso de suas trajetórias. Me parece que já é hora de não aceitarmos um Brasil rural causador de sofrimento e mortes em nome do lucro de grandes empresas. 
Luis Felipe Cesar lembrou que a Universidade Rural tem uma fazendinha agroecológica modelo em Seropédica,  que reproduz uma unidade de produção familiar, aberta à visitação. Aí está demonstrada a viabilidade da produção em menor escala, que incorpora lógicas de solidariedade e cooperação, diferentes da lógica das commodities para exportação oriundas dos latifúndios monocultores. Esses latifúndios são em geral mecanizados, adquirem máquinas que valem milhões enquanto os trabalhadores vão gradualmente sendo expulsos do campo, sem espaço para sua produção familiar, esmagados pelas imensas propriedades.
É importante sabermos que o uso de venenos na produção alimentícia segue a lógica virtual dos grandes mercados, que busca a elevação do valor de suas ações, o que acaba pressionando o valor dos alimentos consumidos pelas famílias no mercado interno. Alan Tygel salientou que a fome no mundo se deve mais aos trâmites do mercado financeiro do que à escassez de alimentos. Nesse caso, a soja ou milho exportados viram ração ou produtos beneficiados que não colaboram na alimentação das pessoas. A agricultura familiar produz cerca de 70% dos alimentos consumidos no Brasil e ocupa menos de 25% das terras. Ou seja, o agronegócio, negócio literalmente venenoso, ocupa cerca de 75% das terras brasileiras, contamina o meio ambiente, não nos alimenta.

"O agronegócio se assenta no conceito de produtividade, que consiste em extrair o máximo da terra em um ciclo de produção. Essa é a diferença para a agricultura camponesa porque o camponês extrai o máximo da terra, mas não em um ciclo porque sabe que ao fim de uma colheita a terra, assim como nós, precisa repousar. Isso é absolutamente incompatível com lógica de produtividade capitalista, que quer máximo lucro em um ciclo de produção. Por isso, a monocultura capitalista precisa dos agrotóxicos" Boaventura de Sousa Santos

Já suspeitávamos que os saberes dos povos tradicionais valem muito mais do que a revolução verde fez crer, e cada vez mais notamos que uma propriedade pode ser gerida de modo que exista diversidade e qualidade. Por isso, no lugar da ocupação da terra pelo latifúndio da monocultura, defendemos que ela seja ocupada por uma unidade agroecológica, modo de cultivo que compreende a terra como um ser vivo e que produz alimentos nessa lógica de cuidar da terra e de toda a unidade agricola num só movimento; homens, animais e plantas crescem e evoluem em harmonia, sem venenos e sem injustiças e explorações.
Para quem busca soluções agroecológicas de produção, existem inúmeras alternativas acessíveis e sustentáveis: são biofertilizantes, produção agroflorestal, adubagem orgânica, compostos biodinâmicos, consorciação de plantas amigas, que crescem próximas e se ajudam, etc (citados aqui vulgarmente, mas podem ser melhor detalhados por especialistas hortelãos).
Ao fim de nossa conversa, saímos com a vontade de consumir alimentos orgânicos e agroecológicos, e incentivar uma produção justa em nossa região, como as hortas comunitárias e escolares. Marcados pela instalação de indústrias automobilísticas e até fábricas de agrotóxicos, não esquecemos de nossa tradição rural. Os saberes e práticas da roça nos orgulham e incentivam a seguir na luta pela manutenção da produção agrícola em harmonia com a mãe terra, e por um alimento saudável.

"Não adianta pensar que a luta de classes não é importante porque já vimos que o colonialismo, o sexismo e o capitalismo andam junto, portanto, não faz sentido lutar pelo meio ambiente se não se luta pelas comunidades quilombolas, pelos territórios dos indígenas, pelos povos de rua, pela seguranças dos travestis, contra os massacres de homossexuais" Boaventura de Sousa Santos