hoje passei o dia na lojinha da economia solidária varrendo, limpando e enrolando brigadeiros de cacau orgânico. esqueci de levar o mp3 e fiquei lá só comigo mesma até o momento em que decidi baixar um aplicativo e ouvi a RFI a comentar a invasão de uma igreja em Saint Denis para matar terroristas (que sempre vêm do Oriente Médio, 'milagrosamente').
apareceu a Ana para acabar com minha solidão, vinha comprar sabão de coco babaçu mais uma vez pras amigas pra quem fez propaganda, e me contou sobre seu casamento com o japonês, e do seu orgulho de saber fazer tofu e muitas outras dicas de cozinha natureba das quais se gabava com toda a humildade [a capacidade de se gabar com humildade é para poucos, somente para os entendidos em matéria da vida humana, que parecem ter consciência do valor do que sabem e, paradoxalmente, da pequenez de seus dotes].
logo depois chegou o seu João, que há tempos não via, em sua mountain bike, vinha para prosear e me parabenizar pelo casório, enquanto ia narrando sua viagem de lua de mel pelo nordeste, de onde trouxe algumas mudas de cajá. conversamos sobre a maravilha da cidade pequena, e ele num dilema com a nova esposa, acostumada a viver em São Paulo. "e eu lá sou homem de ficar olhando arranha-céu?". soube então do tutu de feijão feito na panela de ferro "catadas nos quintais por aí, porque todo mundo agora só cozinha no alumínio, acham mais bonito, e tá fazendo o terror com o sistema nervoso das pessoas." seu milho foi plantado no mato, junto com tudo que tá lá, uma espécie de agrofloresta primitiva. jiló tem de monte. fez um pão caseiro para a família da nova esposa, mas parece que ninguém deu valor. eu perguntei por quê. "ah, todo mundo acostumado a só comer bobagem, né, minha filha...". e o seu João compartilhou comigo seus sentimentos sobre a tragédia de Mariana, sua roça, sua vida.
voltei pra casa feliz, leve, alegre e fui me dando conta de que é o contato humano que traz felicidade, o diálogo real, em que o tempo leva o seu próprio tempo para as coisas serem ditas, ouvidas, para as pessoas se verem, se notarem, sem jorros discursivos inconsequentes. isto é um aprendizado diário para quem cresceu nessa civilização líquida. gostaria muito que toda a humanidade pudesse viver assim, como se vive aqui, nas ruas de paralelepípedo cheias de vagas e onde todo mundo sempre quer saber como vai você.