viajar pode ser, paradoxalmente, a melhor maneira de viver o presente, esse continuum processo incansável. os olhos deitam a vista sobre novas realidades, o corpo percebe renovadas sensações e o coração sente um diferente bater; tudo que nos cerca é menos o de sempre, manifestações até então desconhecidas. no alentejo, participo d'Ajudada, um encontro do movimento em transição (transition movement), cuja tese é a de que todos temos um dom, e a partir dele podemos trocar, material e imaterialmente, nossas dádivas uns com os outros, prescindindo assim da necessidade monetária e sua lógica perversa.
durante a Ajudada pude perceber que o agricultor aqui também é o intelectual, e vice-versa, coisa tão rara de se ver, mas que é uma nova realidade que está aí à frente. discute-se o mundo e como podemos ajudar uns aos outros, de que forma viabilizar um outro sistema, onde nossa vida teria um sentido mais holístico, integrado à natureza e aos dons de cada um, essenciais para a integração planetária - homem e natureza somos um.
embora saibam que não há resposta nem certezas, e que todos estamos em busca do caminho a ser desenhado, todos na Ajudada falam sobre suas crenças, sejam anarquistas, permacultores, ou anti-ideologistas. apesar de muito ter refletido nessas discussões, e, especialmente estado mais perto da cultura portuguesa e de uma brisa de esperança que tão bem me fez, senti que precisava ver o mundo, e fui trabalhar na cantina do evento - onde só participavam voluntários em todos os âmbitos -, e ali senhoras portuguesas trabalhavam com afinco pelo que diziam ser uma "feira de solidariedade", quando explicavam a seus conterrâneos o que se estava a passar. senti com elas o que é generosidade e que existe no coração daqueles que há tempos doam suas dádivas pelo bem comum.
depois disso, fui sentir a cidade daqueles alheios aos acontecimentos avant-garde que rolavam n"Ajudada. vi então as tunas, canções interpretadas por estudantes secundaristas, com animação deles e da comunidade. a festa acontecia no jardim interno duma velha biblioteca, cujo castanho do teto brilhava. à volta velhos artesãos expunham sua arte à comunidade: cerâmica, cortiça, bordado com castanha portuguesa. encontrei o seu monteiro, pintor que me lembrou van gogh e que me disse nunca ter visto um de seus quadros antes de começar sua arte, mas já se identificava de tanto que lhe diziam, era o van gogh do alentejo. o vizinho, seu manoel frutuoso, com suas cestarias, me detalhou o processo de coleta e estoque das vigas de castanho. quando lhe pergunto sobre as novas gerações, diz que lhe prometiam aprender a arte, mas tardavam um cadinho. aos 82 anos, somava 60 de prática na canastaria e tinha que baixar o preço dos cestos pois ninguém pagava o que mereciam.
ao deparar-me com seu macedo, seu frutuoso e os demais, percebi que a economia da dádiva - como já o disse o Marcos Cotrim sobre a região da Paraíba Nova - está arraigada na tradição mais antiga e se manifesta, há muito, onde a lógica do capital não foi ainda capaz de corroer os laços humanos mais profundos. sai da biblioteca contente porque no mundo real as coisas nem sempre vão tão mal.
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